domingo, 27 de junho de 2010

O corpo Hemético (Um conto de Pedro Bonifrate)


nesse conto pode-se ouvir ao fundo uma canção triste e flutuante como as tardes que passamos juntos atrelados, se confundindo e se perdendo nos aromas da hora poente; nada pode ser esquecido, mesmo que não faça mais sentido, tudo permanece.
"A alegria doía naquele instante em que a abraçava, deixei a doer, como se fosse a primeira e última vez..." li certa vez num romance imaginado... de certa forma me conectei ao corpo hemético de Bonifrate, e sua prova de amor sem amor... "A vida é cheia destas artes de se ser, não sendo, pensou(...)" Há muito que também perdi as chaves de casa, mas eu e Hermes tivemos finais adversos, que pouco cabem aqui. "Quem está falando em vencer? O importante é superar" disse Rilke; se superar, se tranformar, perder a chave do abismo para encontra-la adiante, fazer o espetáculo valer o ingresso, com tudo que tem direito: imprevisto(s), drama(s), e principalmente, humor e amor! o importante é o processo nem tanto a façanha. Ótimo conto; para ler e não ser.


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O Corpo Hermético


Hermes chegou junto com o lilás do céu à Rua dos Casais. Os sapos coaxavam em silêncio e os pequenos gaviões reais procuravam insistentemente um ângulo perfeito para que se pudessem refletir sobre a água do charco com alguma graça. Reparou um casal de marrecos e o véu melancólico das teias de aranha molhadas pelo orvalho o fizeram lembrar que chegou a contar vinte e sete num outro desses verões. Como se a cidade houvesse sido riscada do itinerário sazonal dos pobres patos recheados com farofa que os turistas comiam na beira da estrada. Tentou lembrar-se de algum lugar onde poderia ter perdido sua chave: qualquer canto desta maldita aldeia!
As últimas horas haviam sido estranhas. Não da maneira habitual como de fato o eram sempre que botava os pés naquela velha espelunca e pedia uma cachaça à menina de pupilas quadradas atrás do balcão. Não! Desta vez, a noite fora invadida por detalhes improváveis. Nada de que se pudesse lembrar concretamente neste exato momento, mas algo que condicionava o seu humor. Mais do que isso: era doloroso existencialmente tentar se lembrar de algo que sabia não haver concretamente acontecido. Hermes agora não tem tempo para isso. Precisa automatizar seus movimentos. Deve haver ainda algum vidro quebrado na janela dos fundos.
Não havia. Um impulso que demonstrasse misteriosamente uma faísca de racionalidade o teria levado a procurar um pedregulho com que pudesse violentar o imóvel e forçar seu caminho às cobertas, mas tal impulso não chegou a emergir do lodo em que se transformara sua teia de sinapses. Não tinha dúvidas quanto à presença da rede na varanda do lado oposto da casa. Podia senti-la. Então apressou seus passos sobre o gramado farfalhante e olhou o Cruzeiro do Sul pela última vez.
No momento em que se estirou na rede e perdeu o peso do corpo, perdeu também o do espírito, e voltou a apoiar os cotovelos no balcão viscoso daquilo que só se poderia chamar de uma taverna. Buscou as pupilas quadradas e agora elas eram triângulos. Mais uma? Empurrou o copo para frente como se as articulações de seu braço nada mais fossem que engrenagens respondendo a um impulso inevitável e da mesma maneira entornou o líquido sujo goela abaixo. Já se perguntava por que tanta demora quando, sutil como uma das chuvas de verão locais, ela passou pela porta e sentou-se ao seu lado olhando fixamente para as garrafas sobre a prateleira atrás do balcão. Este lugar me dá nos nervos, disse. Também estou feliz por te ver. O coaxar dos sapos preenchia o silêncio com pensamentos agora esquecidos.
Alice inclinou a cabeça para o lado e coçou com força a superfície imediatamente anterior à sua pequena e terna orelha - gesto que repetia sempre que pretendia encarar Hermes mais uma vez. Hermes sentiu o frio sonoro e irrecorrível dos dois olhos ausentes de luz e teve vontade de comê-los vivos. Depois, simplesmente se perdeu neles. Quando se achou, estava com seus lábios nos dela e percebeu que aquilo não duraria. Parou por ali. Alice espasmou levemente as sombrancelhas como um sinal inevitável de angústia, ou seria ódio? Recolheu sua bolsa de couro preta de cima do balcão e correu em direção à porta.
Hermes novamente estendeu seu braço com o copo nas mãos em direção à menina de pupilas triangulares enquanto batia levemente a testa contra o balcão viscoso. Il-n'y-a pas d'amour. Il-y-a des preuves d'amour, disse a voz macia e cansada de existir de um velho de bigodes amarelos e chapéu de palha sentado à mesa mais suja do canto mais incógnito do pequeno tugúrio. Hermes não havia notado sua presença até então e, de fato, continuou a não notá-la quando olhou por sobre o ombro direito e descobriu a mesa tão vazia quanto todas as outras.
A vida é cheia destas artes de se ser, não sendo, pensou, e qualquer tentativa de conclusão lógica ou moral se esvaiu com o interromper do encadeamento neural causado pela boa e velha cachaça, sua amiga de tempos.
Que me resta agora além de caminhar de volta pela beira da estrada, plena de buracos e rãs esmagadas, plena de pequenos artrópodes apimentados, de plenitudes vazias, de pleonasmos redundantes, plena de perguntas quebradas, de lembranças sazonais e lambanças perenes, de efemérides magnéticas insignificantes, plena do gosto do mato, da confusão das pernas, do brilho seco dos teus olhos (luz das estrelas mortas), de mínimos detalhes dotados de uma grandeza abissal e assustadora.
Hermes chegou junto com o lilás do céu à Rua dos Casais. Tateou os bolsos das calças e os do casaco e percebeu a preocupante ausência sonora do tilintar metálico das chaves. Parou. Refletiu por um instante, que foram dois, e três, e quatro, e oito, e resolveu que de nada adiantaria trocar as pernas sobre a lama como o presunçoso bípede pensante que fora desde tempos imemoriais. Mirou por sobre a água do charco, e refletido pela luz da lua lá estava o que ignaramente se acostumara chamar de Eu.
Hermes bebeu daquela água e transmutou-se numa ave aquática. Sem dor, sem nada a temer, olhou o mundo lá do alto e percebeu com espanto do que se tratava: um dínamo gigante de ferro, níquel e silício. Um grandessíssemo Ímã Espiritual. Com a notável sabedoria alta e leve dos seres pneumáticos pode finalmente pensar, sem formular sentença: agora sim, sei que sou seu.






Pedro Bonifrate

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