domingo, 27 de março de 2011

TransaModerna

Se a intenção é interligar eis aqui o primeiro passo, já faz um tempo que venho pensando nele, e afinal de contas por que não?
TransaModerna terá cem números estendidos ao incerto infinito, e trará em cada edição um artista, uma mente, uma alma pra ser exposta nessa galeria flutuante.

Se tu é artista também e acredita no que faz mande-o para e-mail everthebalbus@hotmail.com Ou escreva, saia pintando, tocando suas canções pelas ruas!!!

Seja Marginal
Seja exótico

sábado, 26 de março de 2011

(#1ª.TransaModerna) Ocaso amoroso de Mariana Carvalho


“As mulheres têm somente um grande amor nas suas vidas, mesmo que ele vá embora para sempre, não volte, morra, seja infiel, assassino ou viado”



O manuscrito à seguir não é uma novela joyce-lispectoriana, apesar de todo o teor intimístico e das revelações interiores que se desencadeiam até o infinito, nem sequer uma história de amor, apesar mostrar com alta-fidelidade e sincera semântica como, quando e quanto (imenso, intenso, incenso) ele acontece e tudo que traz consigo, arcanos, espelhos, encontros, duplicidades, lutas, medos, conhecimentos, sabedorias. Além de narrar o encontro de duas almas gêmeas, um homem e uma mulher, uma pessoa só (?) poderiam ser vários pequenos contos lidos ao acaso, não obstante, repletos de profunda poética, mas não.



Chico Buarque uma vez quis ser mulher, pediu à uma fada, ela recusou, era demasiado caro...



Caro leitor, para ler as páginas à seguir terás que ter olhos de quiromante, procure perceber, está tudo dentro de você também, tudo ali é muito preciso e misterioso, precioso. Leia e intua. E foi que depois de dançar com Bethânia e devanear de olhos fechados ao som de Nara Leão percebeu que sempre fora mulher...



O escrito que trago aqui no #1ª.TransaModerna é assinado por Mariana Carvalho, leia, dance e viva:


Ilustração: Ísis






Ocaso Amoroso



"Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos, uma xícara de café bem forte espantando os arcanos da madrugada, e cigarros, muitos cigarros..."


Caio Fernando Abreu






Cercado de vermelho




Não é digno. Não sou digno. Sendo assim é mais fácil e mais verdadeiro. Por isso chorou pura e sinceramente, o que não era difícil, mas era sempre sem disfarce. Entre soluços e saudades do que não viveu, entre as semelhanças, admirações e sarcasmos históricos ele se sentiu perto de todos que guardavam aquele mesmo segredo. Ele dizia, se ousássemos? Tudo seria mais autêntico e límpido, a vida mais fácil, relacionamentos sinceros e o amor constante.


Triste era não sentir. E sempre sentia que não sentiam. Mas “se era tarde demais, poderia também ser cedo demais” e, assim, fácil como riscar a pólvora acendia-se a luz para explicar o inexplicável. Valeria a pena passar por tudo aquilo, aprender a ser complacente tornando-se límpido e repleto de intenções imaculadas para depois acabar no outro oposto?


Não para ele. Sonhava tanto com aquilo que até o destino travaria uma campanha incerta para vaciná-lo contra o amor quase inevitável. Era de extrema importância, o incitava a continuar naquele rumo quase abandonado, porém já intimamente designado. Um rumo, temia, quase infeliz, já que enlouquecedor. Mas era tarde demais e o medo da paixão deveria ser adiado. Estava indiferente.


Seu amor era imperecível. Era um modesto conforto à sua positividade exacerbada, porém ele continuava se sentindo vazio, cheio de vermelho à sua volta.



Plunct, plact, zum




A sua viagem começou cedo, mas essa explicação ela não devia pra ninguém. Como todos os anos, talvez neste um pouco mais, ela estava no ápice do seu contentamento e, por diversos motivos, queria, mais uma vez, transmiti-los, dividi-los com aqueles que sempre o fizeram com ela.



Seu único e simples desejo era ter ao seu lado aqueles que sempre ali estiveram e, ao contrário dos seus usuais e aparentes apetites metamórficos, queria mesmo era ouvir as mesmas coisas que ouvia sempre daqueles sujeitos. Queria ser como sempre, rir como sempre, nada de novo, pela primeira vez, nada de anseios alternativos ou de palavras rejuvenescedoras e transpirantes.



Não sentiu medo, mas tinha certeza que era hora certa de misturar o velho e o novo, o ex-passado psicótico, a renovação prudente e harmônica e a essência pulsante do eterno presente.



E foi assim, exatamente como ela queria que fosse. Ou melhor. Por que o inesperado, mesmo que seja clássico e conhecido, é um conforto para as almas inquietas.






O isqueiro não funcionava. Percebia-se pela irritação evidente daquele corpo ansioso pela fumaça medicinal. Na rua deserta, o vento endurecia a cara, corriam nuvens confortantes pela cor fúcsia e chovia. Segurando o guarda-chuva amarelo com habilidade podia, com a outra mão, acender seu cigarro. Voltou-se para o incerto em uma desesperada busca pelo fogo, a brasa, isqueiro, fósforo, o formidável lume do vício. Merda de isqueiro de um pila, praguejou mentalmente.



Era um daqueles dias em que Ana, apesar de toda a sua positividade exacerbada e do seu bom humor constante, só queria fumar. Não falaria com ninguém, não diria amores nem para os seus maiores. Acordou com a mesma roupa do dia anterior, calçou os chinelos de pneu sem dar bola para o ruído da chuva e meteu os óculos escuros na cara.





besides fear,




– Eu gosto de ti.




Enquanto ele começava a ressoar o seu suave cântico noturno, ela falou tão baixo que não esperava que ele ouvisse. Sabia que não ouviria, sabia muito bem quando já estava sonhando. Seria épico. A mocinha, para não revelar seu amor, declara-se no escuro, no abraço escondido, no seu amor resistente e superficial para não morrer de. Não esperava que ele ouvisse, mas ambicionava um milagre, esperava o suspiro de amor entrando pelas suas orelhas, alcançando seu tímpano, ressoando em códigos impossíveis no cérebro e então ele adivinharia todos os anseios escondidos naquele coração infantil que não tinha coragem de vomitar. E tinha coragem, aquela menina. Falava pelos cotovelos, dizia amores, sonhos, belezas e desprezos. Cantava aceitação, mas também respeito. E tinha medo. Sentimento incontrolável e arrependimento inconsciente.




– Gosto mesmo.




E a dor do medo secou gelada no rosto corado.








Pior que isso era se devanear em lembranças veladas, enterradas e praticamente martirizadas. Era a segunda vez no dia em que lembrava dele, seu grande amor, acreditava. As mulheres têm somente um grande amor nas suas vidas, mesmo que ele vá embora para sempre, não volte, morra, seja infiel, assassino ou viado. Ela acreditava nisso como na clorofila das plantas, na respiração anaeróbica não vantajosa dos músculos ou no câncer que poderia se originar do seu vício vermelho, além do comunismo. Cigarro forte esse, pensava, a tosse aumentava e o assunto principal, o porquê de tudo, quase esquecia. Sua mãe concordava. Todas temos um amor, mas como saber qual foi? São tantos pedaços de vida, perdidos, ficam no ar, suspensos, adivinhamos, escolhemos, voltamos, é por tempo, ganhado, perdido, como escolher ou saber o que o coração escolheu?



Seu dia ia passando enquanto mais uma vez lembrava que tinha pensado nele duas vezes, agora três, por nada. Por saudade, por tanto tempo sem ouvir a sua voz, sem sentir o seu cheiro. Sabia de tudo, sabia da sua vida como antes, como nos dias em que passava ao seu lado, como nos dias em que dividiam a mesma cama, o mesmo pão, a mesma garrafa de cerveja a cada quinze minutos, sabia. Mas isso não interessava mais. Não dividiam nada mais. As suas memórias não significavam nada. Queria saber das novidades, sentir a vontade sair líquida pela boca, ouvir a excitação de contar tudo como se esses dois anos tivessem parado no tempo e tivessem mais dois para contar minuto por minuto o que aconteceu nesses setecentos e trinta dias em que viveram separados.



Ao vivo, queria participar da vida de alguém que a fez tanto bem, que a ensinou tanta coisa, que passou mil quatrocentos e sessenta dias, todos os dias, todas as horas, querendo meu bem. E ele não sabia, mas ela queria, os quatro anos de amor se tornaram seis, dois sem ouvir a sua voz, queria que ele contasse, como antes, como tudo andava bem, ou mal, que estava bebendo demais, ou de menos, que estava fumando, cheirando, fodendo ou lendo demais. Ou de menos. Sentia prazer em ouvir a sua voz, em outras mídias, outros timbres. Queria saber dele, ouvir dele, sentir dele que ainda existia amor. O amor mais bonito que é a admiração, o amor que não acaba nem com o impronunciável, o amor que a briga o ódio a mágoa não destroem por que o sujeito sabe que é maior.



Acho que foi por isso. Lembrou dele três vezes em apenas um dia. Isso a assustava como se não fosse normal. Desde o dia em que não ouviu amor de volta pensou nele. Desde o dia em que sabia que algo estranho havia acontecido, que havia ficado sem a pessoa que mais amava, que seu corpo ficaria sem sentir um calor específico, um calor escolhido, um calor repentino, ela sabia. Pensaria nele, mesmo sem querer, até a sua voz falar com ânsia de ouvir a dela em retorno, de novo. Ela quis, ouviu todo dia, em seus sonhos, pelas bocas de outras pessoas, pessoas que não tinham meu amor e nenhum amor, pessoas que não tinham nada, algumas pessoas que tinham muito. Ouvia, atentamente, esperando o dia em que poderia falar aquilo tudo, e que ouviria novamente, agora com o seu timbre grave e sutil.



Tsá eu sei que é horrivelmente cedo para dizer isso, mas eu acho que encontrei a minha alma gêmea. De verdade. (Agora, além de cedo ficou imbecil.) A gente mente para si mesmo e para os coitados que nos cercam evocando essas vontades eternas de a-outra-metade-da-laranja e blábláblá e não atina que só está tentando completar um ciclo que simplesmente não existe. Depois ouvindo Queen Andreena pensa que ridxíííííícula eu disse para aquele bofe maníaco que ele era a minha alma gêmea? E se fosse? Foi mesmo na época mais maníaca da minha vida mesquinha. E ai você fica tentando e, obviamente, conseguindo encontrar todos os indícios de amor eterno entre dois psicopatas que possivelmente será eterno porque ocorrerá muito em breve um duplo assassinato, ou homicídio seguido por suicídio de um dos lados e pronto, vocês morreram juntos, a não ser que um deles fuja da morte, ou da sua alma gêmea, antes. Feliz eu, que o fiz. Veja só quanto amor. Sim. Coragem! Será alma gêmea sinônimo de morte?



E depois, um dia, caminhando na rua, descendo a ladeira de bicicleta de cestinha, azul, com banda branca nos pneus, com os cabelos ao vento, vestido floreado, esvoaçante, com as pernas tímidas de fora, ou então, quem sabe, escolhendo pêras no supermercado e pá. Ninguém pediu para você ir comprar pêras, cara! Você nem deveria SEQUER gostar de pêras, ou de livros, ou de CDs, ou de filmes, ou de descer ladeiras de bicicleta. Mas você estava ali escolhendo pêras ou, ou, ou, ou e a gente se viu. E agora não temos mais nada para fazer além de ficarmos nos olhando e olhando e olhando e olhando. Sabe? E só olhar não é o bastante, eu quero dançar, eu quero subir lombas bizarras, quero tomar chás, deitar de pés imundos na tua cama e te morder a noite inteira, eu quero viajar o mundo contigo, quero dançar tango na Argélia e dança do ventre (que cafona!) em Buenos Aires e eu tenho certeza que NUNCA, ninguém, JAMAIS, nenhuma só alma vivente neste globo efêmero e sujo – que continua azul – iria querer fazer isso comigo. Até te conhecer.



Daí ele disse, não existe cedo, baby. Existe somente o tarde. Disse que antes de sermos almas perdidas procurando almas – parecidas ou não – somos almas apressadas. E essa pressa já não é mais uma moléstia da pós modernidade. Assim é melhor, é ótimo. Não deixe que fique tarde! E disse que para os que têm medo de assumir a pressa vão sobrar só a procura e a espera eterna por algo que talvez já tenha até passado.



E nem sei quando eu posso-devo-quero mandar. Porque é muito bom muito rápido muito como eu sempre quis que fosse. Daí depois fomos tomar um café ali no centro. Gente, o que é isso? Tu está certo. Não tem cedo. Também acho que não tem tempo.



Eu era a rainha de dizer que o tempo era só uma convenção. Isso se provou a primeira vez que ficamos juntos. Ou na primeira vez que transamos. Acho que ficou provado na primeira vez que nos vimos. E isso ele mesmo disse. Acho que é de outra vida isso, cara. Ou nossas almas já foderam no imaginário. E se apaixonaram.